Bem Vindo

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"Espelhos" - José Pedro Croft - 2003 - Bragança

terça-feira, 3 de julho de 2007

Editorial

O interesse generalizado e crescente em dar uma nova imagem das cidades tem vindo a valorizar a presença de projectos artísticos no espaço urbano nacional. Se no passado a presença de uma escultura pública era justificada pela celebração de um acontecimento ou pela heroicidade de uma figura ilustre o que motiva hoje a “arte pública”?

Esta é uma das questões que o presente trabalho, todo ele centrado na diversidade de projectos de “arte pública” contemporânea que povoam o espaço nacional, procura abordar.
Importa pois entender não só o próprio conceito de “arte pública”, como também a sua evolução histórica. Tratando-se de um panorama artístico com as suas particularidades é preciso não só interpretar a diversidade de motivações que desencadeiam o aparecimento deste género de projectos, como é importante avaliar a capacidade que eles têm para se converter em activadores do espaço físico e social que ocupam.

O proliferar de projectos artísticos, que se estendem pelos mais diversos espaços da malha urbana, seja com o intuito de os dotar de conteúdo, seja para os tornar pontos de referência, tem vindo a fazer dela, mesmo em meios mais pequenos e periféricos (em muitos casos resultantes de simpósios de escultura) uma espécie de espaço museológico fragmentado, onde, ao contrário daquilo que acontece no museu, não é o público que as procura, são antes as obras de arte que cruzam o percurso do transeunte, transformando-o em espectador involuntário.

Se a Exposição Internacional de Lisboa, como uma das maiores manifestações artísticas colectivas, baliza a história da “arte Pública” em território nacional, que “arte pública” temos desde então? O que explica este recente pulular de projectos? Que leitura é possível daí fazer?

A informação nesta área é limitada ou encontra-se dispersa. A excepção acontece para já com o Museu Virtual de Arte Pública (http://www.culturacentro.pt/), um projecto iniciado em 2004 pela Direcção-Regional da Cultura do Centro e que tem como objectivo principal a inventariação de projectos de “arte pública”, adstrito, contudo, aos projectos artísticos dos seis distritos do centro do país, e com o projecto Amamnese (http://www.anamnese.pt/) que reserva no extenso catálogo digital alguns registos das obras de “arte pública” mais representativas realizadas desde 1993 no nosso país, ou lá fora por artistas nacionais.
Ainda numa fase experimental, acresce-se a este espaço virtual o primeiro registo visual de "arte pública", um abreviado processo levado a cabo em cidades como Bragança e Porto.

Bragança

Como em muitas cidades periféricas, Bragança assistiu, nos últimos anos, a uma transformação da sua malha urbana, uma requalificação de espaços demarcada simultaneamente pela diversidade de projectos de “arte pública” que foram sendo colocados em distintos pontos da cidade, assinalando desse modo, segundo palavras do actual edil, “o início de uma política activa de requalificação e modernização da cidade, na qual a arte em espaço público tem lugar”. Se até 2000 não se encontravam mais de uma dezena de monumentos, o primeiro colocado em 1929 em homenagem aos mortos da 1ª Grande Guerra, é possível encontrar hoje uma grande diversidade de elementos de “arte pública”, alguns da autoria de artistas do panorama artístico contemporâneo como José Pedro Croft, Barata Feyo, Rui Anahory, Graça Morais ou José Rodrigues. Ficam, para já, alguns exemplos.


“Espelhos” – José Pedro Croft – 2003 - Jardim António José de Almeida


“Pórtico” – António Nobre – 1999 – Rua D. Afonso V


“Fiandeira” – José Rodrigues – 2004 - Largo Lucien Guerch


S/ Título – Graça Morais – 2007 – Entrada da Escola Secundária Miguel Torga

http://gracamorais.blogspot.com


“Homenagem ao Comércio Tradicional” – Teixeira de Sousa – 2004 - Praça Camões



“Monumento a Sá Carneiro” – António Nobre – 1982 - Av. Sá Carneiro


“Monumento ao 25 de Abril” – José Rodrigues - 2003 – Av. Das Forças Armadas



S/ Título - António Nobre – 2000 - Rotunda da Av. das Cantarias


S/ Título - Graça Morais – 2004 - Foyer do Teatro Municipal de Bragança



Entrevista


“Mas eu não queria fazer nada daquilo que se fazia por aí. Eu queria fugir àquilo que era comum fazer-se: uma mulher nua ou um cavalo em cima de um pedestal."


Criador de obras tão emblemáticas como polémicas, sobretudo quando, a partir da década de 60, assume de forma radical uma posição controversa no panorama artístico nacional, nomeadamente no que diz respeito à “arte pública”, que então se mantinha submissa aos valimentos tradicionais, o escultor José Rodrigues reitera hoje a mesma postura inconformada que transpõe para os seus projectos de rua.



Jorge da Costa: O Porto, em particular, e algumas vilas e cidades do norte do país, em geral, exibem hoje um número considerável de obras suas em espaços públicos. Como começou esse percurso?
José Rodrigues: A maioria dos projectos nascia, como ainda hoje, a partir de convites. O arquitecto Viana de Lima, que foi também meu professor e um grande amigo pessoal, foi o primeiro a lançar-me o desafio. Foi ele que me convidou a fazer a minha primeira obra realmente com alguma relevância.

J.C.: Refere-se ao monumento da Praça da Ribeira, no Porto?
J.R.: Exactamente.

JC: Que foi também a sua primeira obra polémica.
JR: É verdade, foi na altura uma obra muito contestada. Eu creio que as pessoas não estavam habituadas a este tipo de manifestação artística, estavam à espera de mais um monumento tradicional. Mas eu não queria fazer nada daquilo que se fazia por aí. Eu queria fugir àquilo que era comum fazer-se: uma mulher nua ou um cavalo em cima de um pedestal. Queria algo bem mais simples, queria somente um cubo suspenso por água.

JC: Mas fê-lo a pensar numa atitude provocatória, demarcando desse modo, como afirmou Ernesto de Sousa, a sua posição “isolada”, sublinhando uma clara vontade de agitar o meio artístico, de romper com a fronteira redutora em que ainda se embrenhava o panorama artístico nacional das gerações de 60 e 70?
JR: De maneira nenhuma. Eu sabia que iria causar alguma contestação. Mas não àquele ponto. A minha intenção não era provocar, era inovar, era fazer uma coisa diferente. Mas se uns a contestaram houve também aqueles que a defenderam. Hoje vêem a obra como sua, como se ela pertencesse àquela praça, como se ela fosse parte integrante daquele lugar.

JC: Como se lhe conferisse uma nova identidade...
JR: Isso mesmo.

JC: Essa nova linguagem surge como consequência do contacto que, em 1964, teve, como muitos dos artistas portugueses recém-formados, com o panorama artístico inglês?
JR: Tudo acaba por ter influência. Somos como um papel mata-borrão, absorvemos aqui e ali, misturam-se influências. E isso depois reflecte-se no nosso trabalho. Sem dúvida que essas experiências acabam por acrescentar novidades ao nosso trabalho. Nessa altura da juventude vivia-se ainda uma fase de curiosidade, de procura, de novidade.

JC: Mas não foi apenas a obra da Praça da Ribeira a única a ser contestada, outras obras públicas como o Monumento ao Empresário provocaram uma das mais intensas polémicas artísticas, tendo sido mesmo contestada por algumas das figuras proeminentes da cultura portuense, e até por artistas plásticos do seu núcleo de amigos, particularmente dos “Quatro Vintes”, como Ângelo de Sousa.
JR: Houve mesmo abaixo-assinados. Creio que foi um projecto muito influenciado pela arquitectura. Durante muito tempo o material utilizado na escultura parecia estar reduzido ao bronze ou à pedra. Eu quis utilizar outros materiais que não eram muito comuns, como a conjugação do vidro espelhado com a pedra e água. Procurei criar com asses elementos um jogo harmonioso. Como uma sinfonia de sons, também os materiais procuram essa harmonia, mesmo sendo tão diferentes. Tornei-a numa escultura interactiva, que reflecte não só os edifícios envolventes, como reflecte a contínua mudança da natureza, das nuvens do céu, ou mesmo quem dela se aproxima.

JC: Dos Jardins de Bronze, obras que produziu em 1971, depois da sua passagem pelo Oriente, salienta-se o facto de a atenção estar centrada não na representação em si, mas nos problemas de equilíbrio, de tensão precária. Essa imagem transferiu-a depois para projectos de outra escala.
JR: Referes-te às obras de Cerveira, nomeadamente àquela enorme rocha suspensa por um cabo de aço...

JC: Sim, também. Ma vejo a mesma tensão precária no Cubo da Praça da Ribeira, ou na gigantesca folha metálica de aço corten do Monumento ao 25 de Abril. Tal como a água, também ela aparenta ser uma presença muito forte. E quando não está presente na sua forma orgânica, sugere-a, como acontece, por exemplo, através dos anéis concêntricos da série Jardins de Bronze.
JR: A água é um elemento que nos remete para a sensualidade e eu creio que há em todos os meus trabalhos esse ponto comum. Em todas há sensualidade. Não sou um homem cerebral como é, por exemplo, o Ângelo (de Sousa). Na minha arte há muito de sensualidade, de dramático, de teatral. Criar, esculpir, desenhar é a minha forma de comunicar e eu comunico muito através das mãos. Não sou brilhante na fala nem na escrita. A minha melhor forma de comunicar é através das obras que faço.

JC: Já aqui falámos do pioneirismo dos materiais que utiliza nas suas criações, dos espelhos, da areia, da água. Mas há um critério, há uma motivação, que interfere na escolha deste ou daquele material...
JR: A escolha dos materiais vai surgindo à medida que o projecto vai ganhando forma. Se no início sou eu quem o comanda, a partir de um determinado momento é a obra que vai exigindo, é ela quem pede este ou aquele material, esta ou aquela forma.

JC: As suas obras públicas são também projectadas conforme o espaço que vão ocupar, são específicas para aquele lugar?
JR: Isso é fundamental. A proporção, a envolvente. Tudo é tido em conta para a realização do projecto. Nunca começo a imaginar uma obra sem me deslocar primeiro ao lugar onde vai ser instalada.

JC: Mas essa projecção site specific nem sempre atinge os resultados esperados. Refiro-me, por exemplo, ao Monumento ao 25 de Abril, em Bragança. Também ela uma obra muito contestada, nomeadamente pelo espaço onde que foi instalada.
JR: Quando foi projectada para aquele lugar não havia as infra-estruturas que lá estão hoje, era um espaço aberto para a paisagem, mas agora está cercada de edifícios altos e isso confere-lhe outra dimensão, dá-lhe uma leitura distinta daquela que tinha quando lá foi colocada. Mas é uma obra com uma grande carga simbólica, tem uma mensagem muito forte...

JC: Contudo, em muitos casos essa dimensão simbólica, essa ideologia nem sempre é descodificada pelo transeunte, pois a arte pública não está direccionada ao especialista em arte, mas ao cidadão comum.
JR: Mas é preciso pôr as pessoas a pensar. Eu creio que as obras não são colocadas na rua apenas para tornar os espaços mais bonitos. A arte que é posta cá fora é também um convite à reflexão. Infelizmente no nosso país faltam muito esses espaços. Eu vejo muito as obras como uma encenação, como uma peça que se desenrola em palco e, tal como no teatro, a peça convida o espectador a reflectir, a discutir e tal como no teatro também a obra reclama àqueles que ali passam essa atitude. É preciso parar, observar, interpretar, tirar conclusões, contrapor ideias, acrescentar qualquer coisa àquilo que se vê.

JC: Essa visão tem muito a ver com a faceta de cenógrafo que foi cultivando paralelamente às artes plásticas...
JR: Eu sempre gostei muito do trabalho de cenografia. Considero-a mesmo uma arte total. Sempre fiz cenários para espectáculos de teatro. Quando há quarenta anos comecei a trabalhar nesta área não havia a tecnologia que temos hoje ao nosso dispor, era preciso recorrer muito à imaginação para construir os cenários. Ainda agora estou a preparar o espaço cénico do próximo trabalho do Mário Cláudio.

JC: Os seus trabalhos oscilam muito entre a abstracção geométrica e o figurativo. No entanto, este último parece ser um elemento quase, se não totalmente, arredado das obras públicas de maior amplitude. Há alguma razão para isso?
JR: Sim. Isso tem muito a ver com a dimensão do projecto. Não é fácil fazer figurativo àquela escala. Além disso, a diversidade de materiais que temos hoje à disposição permite realizar trabalhos de dimensões cada vez maiores, de tal modo que é preciso recorrer às técnicas de engenharia mais apuradas. Primeiramente são projectados em maquetas e depois são ampliados à escala.


JC: Desde a Cooperativa Árvore e paralelamente à criação artística tem vindo a incrementar, fora do Porto, outros pólos dinamizadores da arte, como foi o caso de Cerveira. Isso é uma espécie de democratização da arte, um modo de dar corpo ao lema “arte para todos”?
JR: Hoje em Cerveira respira-se arte por todo o lado. Isso deveu-se não apenas à criação da Bienal, mas também aos vários Simpósios de Escultura que ali se realizaram e onde os artistas acabaram por deixar as suas obras, mostrando o que ali se produziu. Mas isso só foi possível graças ao apoio e ao empenho autárquico. Sem isso nada disto seria possível. Mas no fim ganhamos todos. Ganham os artistas porque produzem as suas obras, ganha a edilidade porque vê os espaços públicos da sua autarquia enriquecidos pela arte e ganham as pessoas que lá vivem ou que a visitam. Além disso é um orgulho saber que temos em Cerveira uma escola de Arquitectura a funcionar, a formar gente nova.

JC: Foi isso que quis fazer também em Alfândega da Fé com o simpósio da pedra “Arte Urbana no Espaço Público”, transformando as ruas, praças e jardins daquela pequena vila numa espécie de área museológica fragmentada?
JR: É isso. É preciso descentralizar a cultura. Começamos com o Simpósio da Pedra, que teve três edições, e onde participaram muitos artistas portugueses e estrangeiros. Hoje é um prazer passear pelas ruas e praças da vila cheias de obras de arte. A arte aproximou-se realmente das pessoas. Depois quisemos dar continuidade a esta iniciativa através da pintura mural.

JC: Foi assim que nasceu aquele gigantesco painel de cerâmica a quatro mãos, a que chamou “Quatro Olhares sobre Alfândega”...
JR: Quisemos dar continuidade aos simpósios de escultura, sempre com o mesmo propósito, mas variando os suportes e as técnicas. Foi também um projecto muito interessante que resultou precisamente do modo pessoal como aqueles quatro artistas do Porto viram Alfândega.