Bem Vindo

Bem Vindo
"Espelhos" - José Pedro Croft - 2003 - Bragança

terça-feira, 3 de julho de 2007

Editorial

O interesse generalizado e crescente em dar uma nova imagem das cidades tem vindo a valorizar a presença de projectos artísticos no espaço urbano nacional. Se no passado a presença de uma escultura pública era justificada pela celebração de um acontecimento ou pela heroicidade de uma figura ilustre o que motiva hoje a “arte pública”?

Esta é uma das questões que o presente trabalho, todo ele centrado na diversidade de projectos de “arte pública” contemporânea que povoam o espaço nacional, procura abordar.
Importa pois entender não só o próprio conceito de “arte pública”, como também a sua evolução histórica. Tratando-se de um panorama artístico com as suas particularidades é preciso não só interpretar a diversidade de motivações que desencadeiam o aparecimento deste género de projectos, como é importante avaliar a capacidade que eles têm para se converter em activadores do espaço físico e social que ocupam.

O proliferar de projectos artísticos, que se estendem pelos mais diversos espaços da malha urbana, seja com o intuito de os dotar de conteúdo, seja para os tornar pontos de referência, tem vindo a fazer dela, mesmo em meios mais pequenos e periféricos (em muitos casos resultantes de simpósios de escultura) uma espécie de espaço museológico fragmentado, onde, ao contrário daquilo que acontece no museu, não é o público que as procura, são antes as obras de arte que cruzam o percurso do transeunte, transformando-o em espectador involuntário.

Se a Exposição Internacional de Lisboa, como uma das maiores manifestações artísticas colectivas, baliza a história da “arte Pública” em território nacional, que “arte pública” temos desde então? O que explica este recente pulular de projectos? Que leitura é possível daí fazer?

A informação nesta área é limitada ou encontra-se dispersa. A excepção acontece para já com o Museu Virtual de Arte Pública (http://www.culturacentro.pt/), um projecto iniciado em 2004 pela Direcção-Regional da Cultura do Centro e que tem como objectivo principal a inventariação de projectos de “arte pública”, adstrito, contudo, aos projectos artísticos dos seis distritos do centro do país, e com o projecto Amamnese (http://www.anamnese.pt/) que reserva no extenso catálogo digital alguns registos das obras de “arte pública” mais representativas realizadas desde 1993 no nosso país, ou lá fora por artistas nacionais.
Ainda numa fase experimental, acresce-se a este espaço virtual o primeiro registo visual de "arte pública", um abreviado processo levado a cabo em cidades como Bragança e Porto.

Bragança

Como em muitas cidades periféricas, Bragança assistiu, nos últimos anos, a uma transformação da sua malha urbana, uma requalificação de espaços demarcada simultaneamente pela diversidade de projectos de “arte pública” que foram sendo colocados em distintos pontos da cidade, assinalando desse modo, segundo palavras do actual edil, “o início de uma política activa de requalificação e modernização da cidade, na qual a arte em espaço público tem lugar”. Se até 2000 não se encontravam mais de uma dezena de monumentos, o primeiro colocado em 1929 em homenagem aos mortos da 1ª Grande Guerra, é possível encontrar hoje uma grande diversidade de elementos de “arte pública”, alguns da autoria de artistas do panorama artístico contemporâneo como José Pedro Croft, Barata Feyo, Rui Anahory, Graça Morais ou José Rodrigues. Ficam, para já, alguns exemplos.


“Espelhos” – José Pedro Croft – 2003 - Jardim António José de Almeida


“Pórtico” – António Nobre – 1999 – Rua D. Afonso V


“Fiandeira” – José Rodrigues – 2004 - Largo Lucien Guerch


S/ Título – Graça Morais – 2007 – Entrada da Escola Secundária Miguel Torga

http://gracamorais.blogspot.com


“Homenagem ao Comércio Tradicional” – Teixeira de Sousa – 2004 - Praça Camões



“Monumento a Sá Carneiro” – António Nobre – 1982 - Av. Sá Carneiro


“Monumento ao 25 de Abril” – José Rodrigues - 2003 – Av. Das Forças Armadas



S/ Título - António Nobre – 2000 - Rotunda da Av. das Cantarias


S/ Título - Graça Morais – 2004 - Foyer do Teatro Municipal de Bragança



Entrevista


“Mas eu não queria fazer nada daquilo que se fazia por aí. Eu queria fugir àquilo que era comum fazer-se: uma mulher nua ou um cavalo em cima de um pedestal."


Criador de obras tão emblemáticas como polémicas, sobretudo quando, a partir da década de 60, assume de forma radical uma posição controversa no panorama artístico nacional, nomeadamente no que diz respeito à “arte pública”, que então se mantinha submissa aos valimentos tradicionais, o escultor José Rodrigues reitera hoje a mesma postura inconformada que transpõe para os seus projectos de rua.



Jorge da Costa: O Porto, em particular, e algumas vilas e cidades do norte do país, em geral, exibem hoje um número considerável de obras suas em espaços públicos. Como começou esse percurso?
José Rodrigues: A maioria dos projectos nascia, como ainda hoje, a partir de convites. O arquitecto Viana de Lima, que foi também meu professor e um grande amigo pessoal, foi o primeiro a lançar-me o desafio. Foi ele que me convidou a fazer a minha primeira obra realmente com alguma relevância.

J.C.: Refere-se ao monumento da Praça da Ribeira, no Porto?
J.R.: Exactamente.

JC: Que foi também a sua primeira obra polémica.
JR: É verdade, foi na altura uma obra muito contestada. Eu creio que as pessoas não estavam habituadas a este tipo de manifestação artística, estavam à espera de mais um monumento tradicional. Mas eu não queria fazer nada daquilo que se fazia por aí. Eu queria fugir àquilo que era comum fazer-se: uma mulher nua ou um cavalo em cima de um pedestal. Queria algo bem mais simples, queria somente um cubo suspenso por água.

JC: Mas fê-lo a pensar numa atitude provocatória, demarcando desse modo, como afirmou Ernesto de Sousa, a sua posição “isolada”, sublinhando uma clara vontade de agitar o meio artístico, de romper com a fronteira redutora em que ainda se embrenhava o panorama artístico nacional das gerações de 60 e 70?
JR: De maneira nenhuma. Eu sabia que iria causar alguma contestação. Mas não àquele ponto. A minha intenção não era provocar, era inovar, era fazer uma coisa diferente. Mas se uns a contestaram houve também aqueles que a defenderam. Hoje vêem a obra como sua, como se ela pertencesse àquela praça, como se ela fosse parte integrante daquele lugar.

JC: Como se lhe conferisse uma nova identidade...
JR: Isso mesmo.

JC: Essa nova linguagem surge como consequência do contacto que, em 1964, teve, como muitos dos artistas portugueses recém-formados, com o panorama artístico inglês?
JR: Tudo acaba por ter influência. Somos como um papel mata-borrão, absorvemos aqui e ali, misturam-se influências. E isso depois reflecte-se no nosso trabalho. Sem dúvida que essas experiências acabam por acrescentar novidades ao nosso trabalho. Nessa altura da juventude vivia-se ainda uma fase de curiosidade, de procura, de novidade.

JC: Mas não foi apenas a obra da Praça da Ribeira a única a ser contestada, outras obras públicas como o Monumento ao Empresário provocaram uma das mais intensas polémicas artísticas, tendo sido mesmo contestada por algumas das figuras proeminentes da cultura portuense, e até por artistas plásticos do seu núcleo de amigos, particularmente dos “Quatro Vintes”, como Ângelo de Sousa.
JR: Houve mesmo abaixo-assinados. Creio que foi um projecto muito influenciado pela arquitectura. Durante muito tempo o material utilizado na escultura parecia estar reduzido ao bronze ou à pedra. Eu quis utilizar outros materiais que não eram muito comuns, como a conjugação do vidro espelhado com a pedra e água. Procurei criar com asses elementos um jogo harmonioso. Como uma sinfonia de sons, também os materiais procuram essa harmonia, mesmo sendo tão diferentes. Tornei-a numa escultura interactiva, que reflecte não só os edifícios envolventes, como reflecte a contínua mudança da natureza, das nuvens do céu, ou mesmo quem dela se aproxima.

JC: Dos Jardins de Bronze, obras que produziu em 1971, depois da sua passagem pelo Oriente, salienta-se o facto de a atenção estar centrada não na representação em si, mas nos problemas de equilíbrio, de tensão precária. Essa imagem transferiu-a depois para projectos de outra escala.
JR: Referes-te às obras de Cerveira, nomeadamente àquela enorme rocha suspensa por um cabo de aço...

JC: Sim, também. Ma vejo a mesma tensão precária no Cubo da Praça da Ribeira, ou na gigantesca folha metálica de aço corten do Monumento ao 25 de Abril. Tal como a água, também ela aparenta ser uma presença muito forte. E quando não está presente na sua forma orgânica, sugere-a, como acontece, por exemplo, através dos anéis concêntricos da série Jardins de Bronze.
JR: A água é um elemento que nos remete para a sensualidade e eu creio que há em todos os meus trabalhos esse ponto comum. Em todas há sensualidade. Não sou um homem cerebral como é, por exemplo, o Ângelo (de Sousa). Na minha arte há muito de sensualidade, de dramático, de teatral. Criar, esculpir, desenhar é a minha forma de comunicar e eu comunico muito através das mãos. Não sou brilhante na fala nem na escrita. A minha melhor forma de comunicar é através das obras que faço.

JC: Já aqui falámos do pioneirismo dos materiais que utiliza nas suas criações, dos espelhos, da areia, da água. Mas há um critério, há uma motivação, que interfere na escolha deste ou daquele material...
JR: A escolha dos materiais vai surgindo à medida que o projecto vai ganhando forma. Se no início sou eu quem o comanda, a partir de um determinado momento é a obra que vai exigindo, é ela quem pede este ou aquele material, esta ou aquela forma.

JC: As suas obras públicas são também projectadas conforme o espaço que vão ocupar, são específicas para aquele lugar?
JR: Isso é fundamental. A proporção, a envolvente. Tudo é tido em conta para a realização do projecto. Nunca começo a imaginar uma obra sem me deslocar primeiro ao lugar onde vai ser instalada.

JC: Mas essa projecção site specific nem sempre atinge os resultados esperados. Refiro-me, por exemplo, ao Monumento ao 25 de Abril, em Bragança. Também ela uma obra muito contestada, nomeadamente pelo espaço onde que foi instalada.
JR: Quando foi projectada para aquele lugar não havia as infra-estruturas que lá estão hoje, era um espaço aberto para a paisagem, mas agora está cercada de edifícios altos e isso confere-lhe outra dimensão, dá-lhe uma leitura distinta daquela que tinha quando lá foi colocada. Mas é uma obra com uma grande carga simbólica, tem uma mensagem muito forte...

JC: Contudo, em muitos casos essa dimensão simbólica, essa ideologia nem sempre é descodificada pelo transeunte, pois a arte pública não está direccionada ao especialista em arte, mas ao cidadão comum.
JR: Mas é preciso pôr as pessoas a pensar. Eu creio que as obras não são colocadas na rua apenas para tornar os espaços mais bonitos. A arte que é posta cá fora é também um convite à reflexão. Infelizmente no nosso país faltam muito esses espaços. Eu vejo muito as obras como uma encenação, como uma peça que se desenrola em palco e, tal como no teatro, a peça convida o espectador a reflectir, a discutir e tal como no teatro também a obra reclama àqueles que ali passam essa atitude. É preciso parar, observar, interpretar, tirar conclusões, contrapor ideias, acrescentar qualquer coisa àquilo que se vê.

JC: Essa visão tem muito a ver com a faceta de cenógrafo que foi cultivando paralelamente às artes plásticas...
JR: Eu sempre gostei muito do trabalho de cenografia. Considero-a mesmo uma arte total. Sempre fiz cenários para espectáculos de teatro. Quando há quarenta anos comecei a trabalhar nesta área não havia a tecnologia que temos hoje ao nosso dispor, era preciso recorrer muito à imaginação para construir os cenários. Ainda agora estou a preparar o espaço cénico do próximo trabalho do Mário Cláudio.

JC: Os seus trabalhos oscilam muito entre a abstracção geométrica e o figurativo. No entanto, este último parece ser um elemento quase, se não totalmente, arredado das obras públicas de maior amplitude. Há alguma razão para isso?
JR: Sim. Isso tem muito a ver com a dimensão do projecto. Não é fácil fazer figurativo àquela escala. Além disso, a diversidade de materiais que temos hoje à disposição permite realizar trabalhos de dimensões cada vez maiores, de tal modo que é preciso recorrer às técnicas de engenharia mais apuradas. Primeiramente são projectados em maquetas e depois são ampliados à escala.


JC: Desde a Cooperativa Árvore e paralelamente à criação artística tem vindo a incrementar, fora do Porto, outros pólos dinamizadores da arte, como foi o caso de Cerveira. Isso é uma espécie de democratização da arte, um modo de dar corpo ao lema “arte para todos”?
JR: Hoje em Cerveira respira-se arte por todo o lado. Isso deveu-se não apenas à criação da Bienal, mas também aos vários Simpósios de Escultura que ali se realizaram e onde os artistas acabaram por deixar as suas obras, mostrando o que ali se produziu. Mas isso só foi possível graças ao apoio e ao empenho autárquico. Sem isso nada disto seria possível. Mas no fim ganhamos todos. Ganham os artistas porque produzem as suas obras, ganha a edilidade porque vê os espaços públicos da sua autarquia enriquecidos pela arte e ganham as pessoas que lá vivem ou que a visitam. Além disso é um orgulho saber que temos em Cerveira uma escola de Arquitectura a funcionar, a formar gente nova.

JC: Foi isso que quis fazer também em Alfândega da Fé com o simpósio da pedra “Arte Urbana no Espaço Público”, transformando as ruas, praças e jardins daquela pequena vila numa espécie de área museológica fragmentada?
JR: É isso. É preciso descentralizar a cultura. Começamos com o Simpósio da Pedra, que teve três edições, e onde participaram muitos artistas portugueses e estrangeiros. Hoje é um prazer passear pelas ruas e praças da vila cheias de obras de arte. A arte aproximou-se realmente das pessoas. Depois quisemos dar continuidade a esta iniciativa através da pintura mural.

JC: Foi assim que nasceu aquele gigantesco painel de cerâmica a quatro mãos, a que chamou “Quatro Olhares sobre Alfândega”...
JR: Quisemos dar continuidade aos simpósios de escultura, sempre com o mesmo propósito, mas variando os suportes e as técnicas. Foi também um projecto muito interessante que resultou precisamente do modo pessoal como aqueles quatro artistas do Porto viram Alfândega.

Arte Pública em Espaço Nacional

Segundo o Dicionário de Escultura Portuguesa, “toda a obra concebida para ser instalada num lugar público, mantendo uma presença física nesse meio e desencadeando valores de ordem simbólica, plástica e estética, pode ser considerada «arte pública».”

No entanto, esta abreviada definição levanta de imediato outras questões que é necessário clarificar para entender melhor o conceito. O que se entende por espaço público? Serão públicas as áreas de posse do poder público ou áreas expostas à nossa visão? Por outras palavras, não será também “arte pública” aquela que se encontra em espaço privado, mas que pode ser percepcionada a partir de um espaço público? Veja-se a este propósito a Plantoir do sueco Claes Oldenburg, instalada em 2002 no Parque de Serralves. Mais correcto seria então afirmar que é “arte pública” a obra se encontra em domínio público, isto é, a sua contemplação seja livre, ainda que o espaço onde está instalada pertença ao domínio privado. Por isso, a questão do local não deixa de ser para já importante.

Outra questão que se levanta é o facto de poder ser entendida como “arte pública” a diversidade de obras como são, por exemplo, os bustos, as lápides, mausoléus ou a estatuária em geral. Não pertencerão elas antes a um outro conceito, ao conceito de “monumento”?

Ainda que acredores de conotações similares, a “arte pública” veio, num determinado momento, substituir o monumento, ocupando mesmo os lugares a ele reservados. No entanto, é preciso, desde já, assinalar algumas diferenças. O monumento parece estar relacionado especificamente com as obras expostas publicamente com o intuito de perpetuar a memória de um facto ou de uma personalidade notável, procurando que a leitura da sua mensagem seja eficaz, evitando, por isso, o uso de alegorias, que conduziriam a leituras pouco objectivas. Ao contrário, a “arte pública” responde exactamente a essa pluralidade de leituras, quase sempre apoiadas em poéticas pessoais, sugeridas pela proximidade que tem aos movimentos de vanguarda. Por outro lado, o monumento, na sua qualidade de objecto para a memória, tem subjacente a função de evocar, de exaltar, e não de questionar. Essa atitude reflexiva é desencadeada no espectador pela “arte pública”. Essa questão foi mesmo radicalizada por Richard Serra, considerando que as suas obras não eram feitas em memória de ninguém, de nenhum lugar ou de nenhum acontecimento. O seu objectivo estava em “redefinir um lugar e não em representá-lo”.


Neste sentido surge a necessidade de esclarecer a partir de que momento podemos realmente considerar o aparecimento do termo “arte pública”. Ao longo do século XIX as estátuas públicas representavam o principal género deste tipo de manifestação artística, reduzido a materiais como a pedra e o bronze onde se apresentavam figuras ilustres em poses solenes; obras figurativas, geralmente associadas a uma função comemorativa ou laudatória e onde se privilegiava a postura vertical sobre um plinto.

Só a partir da segunda metade do século XX assistimos a um renovar do conceito de “escultura”, conceito que se dilata a uma diversidade de experiências sejam ao nível da representação, sejam ao nível dos materiais, assumindo, desse modo, uma clara rejeição dos cânones tradicionais, reivindicando a expansão do seu campo de intervenção, e provocando simultaneamente a derrocada das teorias que sustentavam o conceito de arte.

Em cidades europeias e americanas surge, então, uma geração de artistas que procura fugir às limitações do museu, ao espaço anódino do white cube e encontram no espaço exterior o lugar ideal para o desenvolvimento dos seus projectos. Começam a ser usados os espaços públicos urbanos e mesmo o meio natural como suporte para estas manifestações artísticas. Neste contexto, encontramos artistas de referência como Richard Serra, Robert Smithson, Claes Oldenburg, ou Christo, artistas que procuram sublevar uma relação mais activa entre a obra e o lugar, convertendo as referências urbanas e sociais como parte constituinte do seu trabalho, desenvolvendo projectos específicos para um determinado lugar.

Desvinculada do anterior conceito de estatuária, a “arte publica” procura então através das suas intervenções site specific concretizar as exigências do novo espaço urbanístico, um espaço que reivindica cada vez mais referências estéticas para lhe conferir uma identidade, qualificando ou requalificando simultaneamente o conceito de cidade contemporânea. Essa diversidade dos campos de acção levaria consequentemente a uma ampliação dos meios para a produzir, recorrendo mesmo a métodos e ferramentas de outras áreas da expressão artística.

A “arte pública” passou a reinventar novas leituras do espaço e, porque está geralmente carregada de sentidos, passou a gerar também novos espaços de significação, atribui-lhes sentido, humaniza-os, acresce-lhe valores e provocando novas percepções. Longe de se restringir apenas a um objectivo tão redutor como é o de se considerar que a “arte pública” é um género artístico que tem por objectivo a produção de uma solução satisfatória para um determinado contexto urbano, esse objectivo não deixa de cumprir simultaneamente vertentes estéticas, de comunicação e de funcionalidade.

Voltando à questão do lugar, convém ainda frisar que o conceito “arte pública” não se circunscreve ao espaço exterior, ao espaço rua. Muitos edifícios de utilização pública, mesmo sendo privados, espaços onde não é necessário pagar para visitar, ou não os frequentamos com o intuito de contactar com a arte como fazemos quando vamos ao museu ou à galeria, acolhem no seu interior muitas obras de “arte pública”.

Vale a pena deixar também claro que a “arte pública” está longe de se coarctar ao conceito de escultura. Ainda que dominante, o conceito estende-se a outras áreas artísticas nomeadamente à pintura, que tem a sua maior expressão em painéis de cerâmica, como são, e apenas a título de exemplo, os que ilustram as paredes da estação da Cidade Universitária, do metropolitano de Lisboa, da autoria de Vieira da Silva, ou o painel “Ribeira Negra”, de Júlio Resende, na Ribeira do Porto.

O conceito poderíamos amplificá-lo ainda a outras áreas como as artes performativas. Veja-se a título de exemplo a acção do grupo portuense Acre que para além de reivindicar a liberdade de criação, tinha como lema “uma arte para toda a gente”. A faixa amarela colocada na Torre dos Clérigos, no Porto, ou a pintura na Rua do Carmo, em Lisboa, metáfora da apropriação de espaços públicos emblemáticos, foram disso um exemplo. O grupo propunha uma “arte inconformista”, uma arte para todos, simples e anticomercial. Esta era também uma forma de combater o elitismo associado à arte, trazendo-a para a rua.

Esta espécie de democratização da arte conduz-nos de imediato aos murais mexicanos produzidos nas décadas de 20 e 30 por um grupo de artistas de onde se destacaram figuras como Diego Rivera, David Siqueiros e José Orozco e que utilizavam a pintura mural, ainda que em estilos e linguagens distintas, não apenas como meio estético de valorizar a cultura autóctone, mas também como recurso para a expressão de ideologias, denunciando através dela os problemas sociais, económicos e políticos do país. Direccionada às classes mais desfavorecidas, esta arte mural, contra a elitista arte de cavalete, a que só alguns tinham acesso, procurava uma maior aproximação ao povo e para que pudesse ser vista por todos, era apresentada em edifícios altos e que se encontravam em posições estratégicas.

A “arte pública” não está centrada exclusivamente no objecto estético, mas tem-se caminhado para um conceito mais amplo como é o da intervenção social. Não podemos esquecer, por isso, a ampla gama de estratégias, ferramentas e de linguagens usadas hoje pela “arte pública” para alcançar e provocar uma vasta audiência. O convencionalismo e a rigidez do objecto estético tem vindo a dar lugar a outros suportes inovadores como é o caso dos painéis publicitários, procurando, a partir daí, uma espécie de diálogo público, de socialização directa, de convite à reflexão, como fez no Chile Alfred Jaar com o gigantesco cartaz publicitário onde se lia a frase “Es Usted Feliz?”. Este tipo de projecto transforma os seus criadores em verdadeiros “activistas sociais”.

Assistimos hoje a um proliferar de obras de arte em espaço público, muito fruto de um renovado estímulo de encomendas por parte de organismos públicos e privados, em particular por parte das autarquias que vêm incentivando e acolhendo projectos artísticos contemporâneos mais ou menos irreverentes como elementos estetizantes dos novos espaços urbanos.

Dotar de conteúdo o espaço que os acolhe, tornando-os desse modo em pontos de referência, ou, em alguns casos, para suavizar erros de planificação ou até para humanizar espaços urbanos degradados parecem estar entre os objectivos mais comuns.

No entanto, o seu percurso, e que agora parece ter encontrado um terreno favorável ao seu desenvolvimento, foi lento e muitas vezes controverso. O panorama da “arte pública” nacional parece ter como referências fundamentais duas das mais emblemáticas manifestações artísticas colectivas realizadas em território português ocorridas no século XX, ainda que em regimes políticos distintos e que são simultaneamente os dois acontecimentos que balizam este tipo de produção artística. Falamos da Exposição do Mundo Português realizada em 1940 e mais de meio século depois, a Exposição Internacional de Lisboa, a “Expo 98”, que reuniu no mesmo espaço urbano requalificado obras de vários artistas plásticos contemporâneos.

Sustentadas por linguagens e objectivos totalmente díspares, o primeiro representava o culminar de uma campanha de encomendas de obras para espaços públicos, tanto do território nacional como das então colónias, numa atitude mais do que “embelezadora” era utilizada como apanágio da “portugalidade e da valorização do passado glorioso”.

A Exposição do Mundo Português surge, assim, como uma expressão ideológica do Estado Novo. O evento reuniu no mesmo projecto a maioria dos artistas nacionais, e teve na mão de Leopoldo de Almeida uma das mais significativas obras, o colossal friso do Padrão dos Descobrimentos.O segundo evento, que surge como suporte plástico de um projecto urbanístico, reuniu obras emblemáticas como a gigantesca estátua Homem-sol de João Vieira, a Instalação dos Espelhos, de Fernanda Fragateiro, as Horas de Chumbo de Rui Chafes, o “Mar Largo” de Fernando conduto ou, entre outros, os Sete Espelhos de José Pedro Croft. Como o primeiro também este é apresentado como o culminar de um outro percurso da “arte pública” que teve início na década de 70, com uma obra de João Cutileiro. Falamos da estátua de D. Sebastião que rompia totalmente com os cânones não só estéticos, mas também ideológicos do Estado Novo. Os novos códigos de representação aqui desencadeados só viriam a desenvolver-se depois do 25 de Abril de 1974, altura em que a expressão artística se democratiza quer em forma quer em conteúdo.

Recensão Crítica

Título: “Cidade em Progresso”
Autor: Óscar Faria
Publicação: Jornal Público de 9 de Fevereiro de 2007, pp. 18-19
(http://jornalpublico.clix.pt/)


“Cidade em Progresso”, título escolhido pelo crítico Óscar Faria a propósito do projecto “Labirintite” que Ricardo Jacinto apresentou temporariamente no foyer da Casa da Música, no Porto, põe imediatamente em destaque um dos pressupostos de Walter Benjamin, o de considerar que uma das características que define a cidade moderna é precisamente a ausência de monumentos. E o termo “monumento” não é mais do que, e segundo designação do escultor Assis Rodrigues, “toda a obra que serve para comemorar ou conservar a lembrança dos homens ilustres ou dos grandes acontecimentos em que estes participaram, principalmente as obras de arquitectura e escultura”.


Mas não é o conceito de monumento que o crítico aqui quer realçar, pelo contrário, pretende acentuar positivamente, a partir de uma obra que habitou temporariamente um espaço público interior, a transfiguração de um espaço público mais amplo, como é o da avenida da Boavista, assemelhando-o a uma espécie de galeria a céu aberto, ainda que ironicamente circunscrito, nas duas extremidades, por dois “monumentos”.

As cidades parecem requerer cada vez mais as obras de conceituados artistas contemporâneos como forma de, através delas, reclamarem para si referenciais tão importantes como são os da modernidade. Esta artéria da cidade parece não ser excepção.

O número crescente e a importância deste tipo de manifestações artísticas parece justificar mesmo um programa de visitas como são, por exemplo, os “Passeios no Porto - Ciclo de Arte Pública” e que percorrem as obras mais significativas da contemporaneidade (de autores nacionais e estrangeiros) que se dispersam pelo espaço da Invicta, desde o projecto de Juan Munõz, instalado no jardim da Cordoaria, ao painel de azulejos “Ribeira Negra” de Júlio Resende; da “Plantoir” de Claes Oldenburg ao “Cubo” da Praça da Ribeira de José Rodrigues.

E se o edifício de Rem Koolhaas domina como a “primeira escultura” da Boavista, e que, como uma obra de “arte pública”, mantém, por contraste ou por ousadia, um diálogo muito particular com a envolvente, acolhendo no seu interior projectos efémeros capazes de provocar reiteradas tensões, o “Palácio” de Pedro Cabrita Reis, uma obra site specific, cumpre uma relação de complementaridade com o edifício a que se acopla. O mesmo parece estender-se à simbiose que a obra de Ângelo de Sousa mantém com o edifício “minimalista” de Souto Moura, que o crítico circunscreve inicialmente a uma função embelezadora do espaço envolvente.

Se no passado a presença de uma escultura era justificada no espaço público pela celebração de um acontecimento ou pelo carácter laudatório de uma figura ilustre, Óscar Faria levanta, aqui, precisamente como primeira questão a de saber o que justifica hoje a “necessidade” dos projectos de “arte pública”, nomeadamente aqueles que são reclamados por outras instituições ou áreas de intervenção que não as instituições culturais.

A presença das duas obras associadas a empreendimentos hoteleiros e imobiliários parece desencadeada por uma nova mentalidade urbanística que exige referências estéticas capazes de conferir, através da arte, uma identidade e, simultaneamente, a de ser capaz de provocar “novas leituras” desse espaço.

Mas o que importa realçar é precisamente a dimensão pública dos projectos, quer artísticos quer arquitectónicos, nomeadamente pela “perspectiva colectiva” que carregam. No seu artigo, Óscar Faria indaga directamente a questão do “social”, vertente que não pode ser descorada quando se fala de “arte pública”. E foi precisamente essa dimensão social do espaço público que terá levado, na década de 90, à acesa contestação de obras públicas como o “Monumento ao Empresário” de José Rodrigues.

A presença de manifestações artísticas que se impõem à vista do transeunte como uma “intromissão”, obrigam-no então a uma “reavaliação dos modos de percepcionar o espaço”, nomeadamente quando falamos das obras do exterior, uma vez que para percepcionar a “Labirintite” de Ricardo Jacinto implica entrar. Fora do espaço do museu a obra de “arte pública” não pode deixar de evitar o confronto directo e contínuo com um público mais global, na sua maioria não especializado.

No entanto, mais do que um confronto entre arte e público, entre arte e arquitectura envolvente, Óscar Faria apresenta o projecto de Cabrita Reis como um elemento apaziguador, capaz de conferir “unidade à cacofonia visual” que a diversidade de edifícios provoca; tal como a peça de Ângelo de Sousa é capaz de conferir dinâmica à rigidez de um edifício, complementando-o. Por outro lado, ao serem apresentados como conjuntos que se intrometem na paisagem urbana, criando com ela uma ruptura, geram, simultaneamente, um efeito inesperado.

Assim, um e outro parecem cumprir positivamente dois dos pressupostos subjacentes a um projecto de “arte pública”: o da necessidade e o da surpresa.

Porto


“Cubo” – José Rodrigues – 1976 - Praça da Ribeira


“S. João” – João Cutileiro - Praça da Ribeira


“Anjo” – Irene Vilar - Foz do rio Douro


“Palácio” – Pedro Cabrita Reis – 2006 - Av. da Boavista

http://www.cabritareis.com/


S/ título - Ângelo de Sousa – 2006 - Av. da Boavista


“Monumento ao Empresário” – José Rodrigues – 1993 - Av. da Boavista


“Plantoir” – Claes Oldenburg & Coosje van Bruggen– 2002 - Jardim do Museu de Serralves

http://www.oldenburgvanbruggen.com/


“Treze a rir uns dos outros” – Juan Munõz – 2001 - Jardim da Cordoaria

Matosinhos


“She Changes” – Janet Echelman – Praça Cidade S. Salvador


“Sol e Mar” – Zulmiro de Carvalho – Rotunda da Exponor


Barata Feyo – Lugar da Boa Nova


Lisboa


“Horas de Chumbo” – Rui Chafes – 1998 - Parque das Nações

www.ruichafes.net



“Instalação dos Espelhos” – Fernanda Fragateiro – 1998 – Parque da Nações


“Homem-sol” – João Vieira – 1998 – Parque das Nações


“Reflexo do Céu, Navegante” – Susumu Shingu – 1998 – Parque das Nações


Alfandega da Fé

Alfândega da Fé, um meio urbano de pequena dimensão, possui um considerável número de projectos de “arte pública”, resultantes de distintas edições que, desde 2002, tem vindo a ser realizadas a partir de Simpósios de Escultura em Pedra e de Pintura Mural. Promovidos pela autarquia local, os projectos foram comissariados pela escultora Lídia Vieira e coordenados pela Cooperativa Árvore.


“Cabeça de Soldado Romano” – Jorge Pé-Curto – 2004 – Jardim público


“Alnite – Vetão” – Moisés – 2004 – Recinto da Feira


“Mistério” – José Esteves – 2002 – Jardim público


“Flor cata-ventos” – Rui Matos – 2002 – Jardim público


“Portal do Cerejais” – Vítor Ribeiro – 2002 – Jardim Público


“Montanha Orgânica” – João Antero – 2002 – Jardim público


“Tangencia no Interior do Espaço” – Carlos Marques – 2003


S/ Título – Pedro Fazenda – 2004 – Largo da S. Casa da Misericórdia




“Quatro Olhares Sobre Alfândega da Fé” – Alberto Péssimo, Américo Moura, Pedro Rocha e Rogério Ribeiro – 2006 – (1º Simpósio de Pintura Mural)