Bem Vindo

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"Espelhos" - José Pedro Croft - 2003 - Bragança

terça-feira, 3 de julho de 2007

Arte Pública em Espaço Nacional

Segundo o Dicionário de Escultura Portuguesa, “toda a obra concebida para ser instalada num lugar público, mantendo uma presença física nesse meio e desencadeando valores de ordem simbólica, plástica e estética, pode ser considerada «arte pública».”

No entanto, esta abreviada definição levanta de imediato outras questões que é necessário clarificar para entender melhor o conceito. O que se entende por espaço público? Serão públicas as áreas de posse do poder público ou áreas expostas à nossa visão? Por outras palavras, não será também “arte pública” aquela que se encontra em espaço privado, mas que pode ser percepcionada a partir de um espaço público? Veja-se a este propósito a Plantoir do sueco Claes Oldenburg, instalada em 2002 no Parque de Serralves. Mais correcto seria então afirmar que é “arte pública” a obra se encontra em domínio público, isto é, a sua contemplação seja livre, ainda que o espaço onde está instalada pertença ao domínio privado. Por isso, a questão do local não deixa de ser para já importante.

Outra questão que se levanta é o facto de poder ser entendida como “arte pública” a diversidade de obras como são, por exemplo, os bustos, as lápides, mausoléus ou a estatuária em geral. Não pertencerão elas antes a um outro conceito, ao conceito de “monumento”?

Ainda que acredores de conotações similares, a “arte pública” veio, num determinado momento, substituir o monumento, ocupando mesmo os lugares a ele reservados. No entanto, é preciso, desde já, assinalar algumas diferenças. O monumento parece estar relacionado especificamente com as obras expostas publicamente com o intuito de perpetuar a memória de um facto ou de uma personalidade notável, procurando que a leitura da sua mensagem seja eficaz, evitando, por isso, o uso de alegorias, que conduziriam a leituras pouco objectivas. Ao contrário, a “arte pública” responde exactamente a essa pluralidade de leituras, quase sempre apoiadas em poéticas pessoais, sugeridas pela proximidade que tem aos movimentos de vanguarda. Por outro lado, o monumento, na sua qualidade de objecto para a memória, tem subjacente a função de evocar, de exaltar, e não de questionar. Essa atitude reflexiva é desencadeada no espectador pela “arte pública”. Essa questão foi mesmo radicalizada por Richard Serra, considerando que as suas obras não eram feitas em memória de ninguém, de nenhum lugar ou de nenhum acontecimento. O seu objectivo estava em “redefinir um lugar e não em representá-lo”.


Neste sentido surge a necessidade de esclarecer a partir de que momento podemos realmente considerar o aparecimento do termo “arte pública”. Ao longo do século XIX as estátuas públicas representavam o principal género deste tipo de manifestação artística, reduzido a materiais como a pedra e o bronze onde se apresentavam figuras ilustres em poses solenes; obras figurativas, geralmente associadas a uma função comemorativa ou laudatória e onde se privilegiava a postura vertical sobre um plinto.

Só a partir da segunda metade do século XX assistimos a um renovar do conceito de “escultura”, conceito que se dilata a uma diversidade de experiências sejam ao nível da representação, sejam ao nível dos materiais, assumindo, desse modo, uma clara rejeição dos cânones tradicionais, reivindicando a expansão do seu campo de intervenção, e provocando simultaneamente a derrocada das teorias que sustentavam o conceito de arte.

Em cidades europeias e americanas surge, então, uma geração de artistas que procura fugir às limitações do museu, ao espaço anódino do white cube e encontram no espaço exterior o lugar ideal para o desenvolvimento dos seus projectos. Começam a ser usados os espaços públicos urbanos e mesmo o meio natural como suporte para estas manifestações artísticas. Neste contexto, encontramos artistas de referência como Richard Serra, Robert Smithson, Claes Oldenburg, ou Christo, artistas que procuram sublevar uma relação mais activa entre a obra e o lugar, convertendo as referências urbanas e sociais como parte constituinte do seu trabalho, desenvolvendo projectos específicos para um determinado lugar.

Desvinculada do anterior conceito de estatuária, a “arte publica” procura então através das suas intervenções site specific concretizar as exigências do novo espaço urbanístico, um espaço que reivindica cada vez mais referências estéticas para lhe conferir uma identidade, qualificando ou requalificando simultaneamente o conceito de cidade contemporânea. Essa diversidade dos campos de acção levaria consequentemente a uma ampliação dos meios para a produzir, recorrendo mesmo a métodos e ferramentas de outras áreas da expressão artística.

A “arte pública” passou a reinventar novas leituras do espaço e, porque está geralmente carregada de sentidos, passou a gerar também novos espaços de significação, atribui-lhes sentido, humaniza-os, acresce-lhe valores e provocando novas percepções. Longe de se restringir apenas a um objectivo tão redutor como é o de se considerar que a “arte pública” é um género artístico que tem por objectivo a produção de uma solução satisfatória para um determinado contexto urbano, esse objectivo não deixa de cumprir simultaneamente vertentes estéticas, de comunicação e de funcionalidade.

Voltando à questão do lugar, convém ainda frisar que o conceito “arte pública” não se circunscreve ao espaço exterior, ao espaço rua. Muitos edifícios de utilização pública, mesmo sendo privados, espaços onde não é necessário pagar para visitar, ou não os frequentamos com o intuito de contactar com a arte como fazemos quando vamos ao museu ou à galeria, acolhem no seu interior muitas obras de “arte pública”.

Vale a pena deixar também claro que a “arte pública” está longe de se coarctar ao conceito de escultura. Ainda que dominante, o conceito estende-se a outras áreas artísticas nomeadamente à pintura, que tem a sua maior expressão em painéis de cerâmica, como são, e apenas a título de exemplo, os que ilustram as paredes da estação da Cidade Universitária, do metropolitano de Lisboa, da autoria de Vieira da Silva, ou o painel “Ribeira Negra”, de Júlio Resende, na Ribeira do Porto.

O conceito poderíamos amplificá-lo ainda a outras áreas como as artes performativas. Veja-se a título de exemplo a acção do grupo portuense Acre que para além de reivindicar a liberdade de criação, tinha como lema “uma arte para toda a gente”. A faixa amarela colocada na Torre dos Clérigos, no Porto, ou a pintura na Rua do Carmo, em Lisboa, metáfora da apropriação de espaços públicos emblemáticos, foram disso um exemplo. O grupo propunha uma “arte inconformista”, uma arte para todos, simples e anticomercial. Esta era também uma forma de combater o elitismo associado à arte, trazendo-a para a rua.

Esta espécie de democratização da arte conduz-nos de imediato aos murais mexicanos produzidos nas décadas de 20 e 30 por um grupo de artistas de onde se destacaram figuras como Diego Rivera, David Siqueiros e José Orozco e que utilizavam a pintura mural, ainda que em estilos e linguagens distintas, não apenas como meio estético de valorizar a cultura autóctone, mas também como recurso para a expressão de ideologias, denunciando através dela os problemas sociais, económicos e políticos do país. Direccionada às classes mais desfavorecidas, esta arte mural, contra a elitista arte de cavalete, a que só alguns tinham acesso, procurava uma maior aproximação ao povo e para que pudesse ser vista por todos, era apresentada em edifícios altos e que se encontravam em posições estratégicas.

A “arte pública” não está centrada exclusivamente no objecto estético, mas tem-se caminhado para um conceito mais amplo como é o da intervenção social. Não podemos esquecer, por isso, a ampla gama de estratégias, ferramentas e de linguagens usadas hoje pela “arte pública” para alcançar e provocar uma vasta audiência. O convencionalismo e a rigidez do objecto estético tem vindo a dar lugar a outros suportes inovadores como é o caso dos painéis publicitários, procurando, a partir daí, uma espécie de diálogo público, de socialização directa, de convite à reflexão, como fez no Chile Alfred Jaar com o gigantesco cartaz publicitário onde se lia a frase “Es Usted Feliz?”. Este tipo de projecto transforma os seus criadores em verdadeiros “activistas sociais”.

Assistimos hoje a um proliferar de obras de arte em espaço público, muito fruto de um renovado estímulo de encomendas por parte de organismos públicos e privados, em particular por parte das autarquias que vêm incentivando e acolhendo projectos artísticos contemporâneos mais ou menos irreverentes como elementos estetizantes dos novos espaços urbanos.

Dotar de conteúdo o espaço que os acolhe, tornando-os desse modo em pontos de referência, ou, em alguns casos, para suavizar erros de planificação ou até para humanizar espaços urbanos degradados parecem estar entre os objectivos mais comuns.

No entanto, o seu percurso, e que agora parece ter encontrado um terreno favorável ao seu desenvolvimento, foi lento e muitas vezes controverso. O panorama da “arte pública” nacional parece ter como referências fundamentais duas das mais emblemáticas manifestações artísticas colectivas realizadas em território português ocorridas no século XX, ainda que em regimes políticos distintos e que são simultaneamente os dois acontecimentos que balizam este tipo de produção artística. Falamos da Exposição do Mundo Português realizada em 1940 e mais de meio século depois, a Exposição Internacional de Lisboa, a “Expo 98”, que reuniu no mesmo espaço urbano requalificado obras de vários artistas plásticos contemporâneos.

Sustentadas por linguagens e objectivos totalmente díspares, o primeiro representava o culminar de uma campanha de encomendas de obras para espaços públicos, tanto do território nacional como das então colónias, numa atitude mais do que “embelezadora” era utilizada como apanágio da “portugalidade e da valorização do passado glorioso”.

A Exposição do Mundo Português surge, assim, como uma expressão ideológica do Estado Novo. O evento reuniu no mesmo projecto a maioria dos artistas nacionais, e teve na mão de Leopoldo de Almeida uma das mais significativas obras, o colossal friso do Padrão dos Descobrimentos.O segundo evento, que surge como suporte plástico de um projecto urbanístico, reuniu obras emblemáticas como a gigantesca estátua Homem-sol de João Vieira, a Instalação dos Espelhos, de Fernanda Fragateiro, as Horas de Chumbo de Rui Chafes, o “Mar Largo” de Fernando conduto ou, entre outros, os Sete Espelhos de José Pedro Croft. Como o primeiro também este é apresentado como o culminar de um outro percurso da “arte pública” que teve início na década de 70, com uma obra de João Cutileiro. Falamos da estátua de D. Sebastião que rompia totalmente com os cânones não só estéticos, mas também ideológicos do Estado Novo. Os novos códigos de representação aqui desencadeados só viriam a desenvolver-se depois do 25 de Abril de 1974, altura em que a expressão artística se democratiza quer em forma quer em conteúdo.

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